Transcrevo abaixo, o artigo do historiador Sérgio da Costa Franco, publicado no jornal Zero Hora do dia 17 de julho, sobre a questão do lixo enviado ao Brasil pelos europeus.
O estranho caso dos carregamentos de lixo que têm chegado aos portos brasileiros, procedentes da Europa, e que estão desafiando a argúcia das aduanas e da própria Polícia Federal desperta surpresa a princípio, mas não parece envolver maiores mistérios. É o Primeiro Mundo livrando-se da carga insuportável de seus rejeitos e desperdícios, e empurrando-os, com dissimulação, para os mercados abertos do subdesenvolvimento.
Agentes da Receita informam que a Máfia italiana já cultivava essa prática, despejando na África os seus descartes. Nós, brasileiros, já tivemos a experiência, disfarçada sob o manto da solidariedade humana: depois de uma das guerras do último século (não me lembro se a da Coreia ou a do Vietnã), o exército americano destinava aos pobres do Brasil os fardamentos danificados de seus combatentes.O consumismo desenfreado que os economistas keynesianos descobriram como remédio para as crises de subemprego e de recessão trouxe como consequência indireta um espantoso crescimento do lixo urbano. Especialmente as embalagens de papel, de cartolina ou de plástico, que enfeitam e tornam atraente toda espécie de mercadorias, locupletam diariamente nossos recipientes de lixo doméstico.Minha geração pôde testemunhar, de corpo presente, todas essas transformações geradas pela paixão do consumo e pela revolução tecnológica.
O leite, que o fornecedor despejava direto em nossa panela, vem-nos agora em caixas de papelão descartáveis. A carne, que saía do açougue para a sacola de compras, embrulhada quando muito numa folha de papel, está agora envolta em resistentes embalagens plásticas. Esse material domina tudo, enrola os legumes e as frutas na feira e no mercado, resguarda até os cortes de frangos, que outrora recebíamos vivos, da capoeira do vendedor para o nosso pátio. Mesmo o vidro das garrafas e dos frascos, que a própria indústria do vidro readquiria e reciclava, está sendo substituído por um invencível plástico, que, entupindo os esgotos e os rios, promete resistir até o fim dos tempos.
Já nem falo da multidão de utensílios de utilidade discutível, aos quais, afinal, nem sabemos dar um destino, quando se tornam inservíveis. Nem refiro a massa de roupas supérfluas que abarrota os armários, e que periodicamente precisa ser descartada, ou por contingências da moda ou pela ação destrutiva dos insetos.Isso fez com que o lixo doméstico, em todos os países ditos civilizados, tenha aumentado além das previsões, a ponto de ser hoje um dos mais sérios problemas da administração urbana.
Que fazer com o lixo, afora a receita básica de incinerá-lo e transformá-lo em adubo ou em aterro? Tais soluções podem ser praticadas quando em pequena escala. Mas quando as sobras e descartes de uma cidade alcançam milhares de toneladas-dia, aí entram em cena as soluções malucas, como essa de despejar a carga no território dos desprevenidos ou subdesenvolvidos.Trata-se agora do mais estranho dos contrabandos. Articula-se um negócio de exportação. Preenche-se uma fatura com mercadorias viáveis e negociáveis, mas enchem-se os contêineres com lixo industrial ou doméstico.
Em outros tempos (não sei se a norma prevalece), as faturas de exportação deviam ser visadas pelos cônsules do país importador. Teoricamente estes verificavam a correspondência entre a fatura e a mercadoria expedida. Imagino que o volume das cargas e dos negócios tenha levado ao desuso essa prática de boa cautela. Mas, diante da velhacaria desses exportadores de lixo, seria necessário reativá-la. Pelo menos para que não entupam nossos portos com lixo hospitalar e outras oferendas menos dignas...
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