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domingo, 21 de junho de 2009

A brasileira que driblou o nazismo em Hamburgo


Em plena era nazista, imagine uma mulher linda, de tipo físico latino, com forte apelo sensual, que passava zunindo em seu veículo pelas ruas de Hamburgo, na Alemanha. Os guardas paravam o carro, mas ficavam boquiabertos com a figura altiva que saía de dentro dele, falando um alemão perfeito e sem sotaque. Inertes, constatavam, então, que ela era funcionária consular, com imunidade garantida.


Mal sabiam que, por vezes, ela transportava judeus - para os quais conseguia vistos de entrada no Brasil e até mesmo o navio em que embarcariam. Não bastassem essas proezas, Aracy de Carvalho foi casada com um dos maiores escritores brasileiros: João Guimarães Rosa. No próximo mês, ela completa 100 anos de vida - assim como faria o escritor. Mora na capital paulista com seu filho, o advogado especializado em Direito Corporativo e Internacional, Eduardo Carvalho Tess, e a nora Beatriz Carvalho Tess.


Tem quatro netos e oito bisnetos. Até os 90 anos, ela morava sozinha no apartamento que dividiu com o marido no Rio de Janeiro, mas, há cerca de sete anos, sofre do Mal de Alzheimer. Por uma ironia do destino, alguém com tanto para contar já não fala, não anda e reconhece o filho apenas algumas vezes. Mas sua memória ficará viva: no momento, duas pesquisadoras estão finalizando uma biografia que vai contar a fascinante história de dona Aracy, enquanto outras brasileiras estão executando pesquisas na Alemanha para um documentário sobre o tema.


Pioneira em todos os aspectos, Aracy é filha de mãe alemã e pai brasileiro. Nasceu em Rio Negro, no Paraná, mas se criou em São Paulo. Como as moças da época, casou-se cedo, com o alemão Johannes Edward Ludwig Tess, com quem teve o filho Eduardo. Mas, insatisfeita, optou pelo desquite e emigrou para a Alemanha. "Um dos motivos foi o clima não muito favorável para uma mulher desquitada no Brasil", conta o filho Eduardo. "Meu pai era alemão, um tipo nórdico, e minha mãe tinha personalidade muito latina." Com o filho de 5 anos, ela aportou na Alemanha em 1934 e foi morar com uma tia em Hamburgo.


Como falava fluentemente alemão, francês e inglês, conseguiu um emprego como chefe de vistos no Consulado do Brasil naquela cidade. Logo o regime nazista e a perseguição aos judeus passaram a revoltar Aracy, especialmente depois da chamada Noite dos Cristais - um atentado às sinagogas, comércios e aos próprios judeus, em 1938. Eduardo lembra de ter visto as vidraças quebradas do comércio judaico. Foi no Consulado que Aracy conheceu o então diplomata João Guimarães Rosa, que tinha o cargo de vice-cônsul.


Na época, a Alemanha vivia um racionamento de comida e, aos semitas, era dada uma quantidade menor de alimentos. Aracy passou a alimentá-los com a cota extra que recebia no Consulado: ia de casa em casa distribuindo comida. Dizem que Guimarães Rosa a acompanhava nessas distribuições, mesmo morrendo de medo pelo que poderia acontecer com sua mulher. Ela foi bem mais longe. Como a entrada dos judeus estava proibida no Brasil pelas leis do Estado Novo, conseguiu vistos para cerca de 100 famílias, segundo as contas de seu filho. A partir de 1937, obtinha atestados de residência para os judeus em Hamburgo e, assim, conseguia a emissão de passaportes sem o J de identificação.


Colocava-os em meio à papelada para o cônsul assinar, sem levantar suspeitas. Eduardo era pequeno na época e, por questões de segurança, foi enviado de volta para morar com a avó em São Paulo - o próprio governo alemão começou a evacuar as crianças por causa dos bombardeios. Mas, segundo contaram ao filho, nessa bonita missão protetora, sua mãe teve o auxílio de um instrutor da auto-escola onde aprendeu a dirigir, que também era policial. "Dizem que era ele que conseguia os atestados de residência em Hamburgo." Em uma das homenagens a ela, Aracy disse que fez tudo isso "simplesmente porque somos todos irmãos", lembram Eduardo e Beatriz. "Ela era guerreira e corajosa, sabia se posicionar", resume seu filho.


Essa belíssima história descobri nos arquivos do jornal Estadão ( http://www.estadao.com.br/suplementos/not_sup133355,0.htm)





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